16 dezembro 2007

O Espelho da História

Artigo publicado no Jornal do Commercio, no dia 30/11/2007 Cristovam Buarque *
www.cristovam.com.br

Da mesma forma que se faz receita de bolo, é possível fazer uma receita de regimes político autoritários. A Venezuela era uma democracia, e fabricou um regime autocrático por causa de uma sistemática repetição de comportamentos equivocados dos seus políticos.
Manutenção de privilégios, tais como o foro especial para parlamentares, insensibilidade diante dos problemas do dia-a-dia do povo, demora no enfretamento dos problemas concretos da população pobre. Falta de lideranças que antecipem o futuro e manifestem as necessidades de mudança para que o País dê o salto dos novos tempos. Troca de votos por mensalão, falta de substância e de coerência de políticos e partidos, aumento de impostos repudiados e absolvição de colegas condenados pela opinião pública. O Congresso sujeito ao papel legislativo do Executivo, por medidas provisórias, e do Judiciário, por medidas liminares. O povo começa a se perguntar: para que despender tanto dinheiro.
A desmoralização do Judiciário é outro ingrediente, quando seus membros passam a idéia de que dedicam mais tempo aumentando seus salários do que fazendo justiça, dentro de palácios ostentadores, quando falta moradia para o povo.
Sobretudo quando seus salários já são os maiores da sociedade e, em certos momentos, chegam perto de 100 vezes o salário mínimo. A impunidade dos ricos que podem pagar bons advogados ou têm conexões no Judiciário, enquanto os pobres são sempre presos por causa dos mais simples crimes, em cadeias desumanas, ao passo que, se por acaso um rico é preso, tem cadeia especial.
Quando a mídia passa a impressão de que dissemina informações com parcialidade e sem credibilidade, a democracia perde um pilar determinante. Ainda mais quando se limita a denúncia da corrupção ao comportamento dos políticos, ignorando a corrupção nas políticas públicas.
A democracia se esvai no vazio no silêncio dos intelectuais. Sobretudo se, em busca de verbas governamenais, eles se calam diante dos erros dos governos. E se protegem no corporativismo.
Com a cooptação dos movimentos sociais e a passividade das associações de estudantes diante dos governos, dos reitores, do professores, o autoritarismo começa a crescer. Com os sindicatos acomodados, buscando somente pequenas vantagens corporativas, aliados à elite, esquecendo o povo e desculpando o governo, cresce o apoio ao autoritarismo no seio do povo excluído, ainda mais ante a passividade dos universitários perante os erros dos governos.
Mas de todos os ingredientes do bolo autoritário, nada é mais grave do que a insensibilidade da elite diante do sofrimento do povo. O choque entre o luxo e o lixo gera um círculo vicioso que favorece o autoritarismo.
Por mais democrática que seja a formação dos quadros das Forças Armadas, elas não resistem ao abandono, seja pela obsolescência de seus equipamentos, seja pelos baixos salários e pela falta de verbas para manter seu funcionamento, especialmente a alientação de seus recrutas. Isso se agrava se as Forças Amadas percebem que as fronteiras estão abandonadas e a democracia é corrupta e ineficiente. Por mais que sejam democráticas, surgirá entre seus membros um autocrata com grande capacidade de liderança.
Todas essas condições, que ocorrem no Brasil de hoje, se parecem muito com a Venezuela de alguns anos atrás, e nossa omissão pode fazer com que a Venezuela de hoje se pareça com o Brasil, no futuro próximo. Como um espelho da história.

* Professor da Universidade de Brasília, senador pelo PDT / DF.

Preciso continuar lutando. E também sonhando.


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Sete Anos

Artigo publicado na Folha de S.Paulo, no dia - 24/11/2007
Cristovam Buarque *
www.cristovam.com.br

Recentemente na Inglaterra, uma monarquia, um de seus parlamentares foi duramente criticado pela mídia e por pares, por ter confessado que seus filhos estudavam em uma escola privada. Em 2014, a república brasileira comemora 125 anos, mas continua incompleta.
Incompleta porque não conseguiu construir a causa comum de uma nação, nem unificar seu povo, que continua dividido em dois lados que convivem apartados. Apesar do seu regime republicano, o Brasil ainda não é uma república no modelo social.
E o principal indicador é a separação educacional, berço da desigualdade e do abismo social. Durante todo esse período, a casta dirigente prometeu que o crescimento econômico distribuiria a renda, e que o desenvolvimento, unificaria a nação, fazendo dela uma república. Foi uma mentira, porque a elite que substituiu a nobreza conservou todos os privilégios e continuou distante do povo.
Essa divisão social estava presente desde o início. Para representar um país com 65% da população adulta composta de analfabetos, os primeiros republicanos desenharam uma bandeira com um texto escrito. A bandeira de uma república de poucos: os que sabiam ler. De lá para cá, a porcentagem foi reduzida para 13%, mas o total de analfabetos mais que dobrou; passando de 6 para 16 milhões os brasileiros incapazes de reconhecer a própria bandeira.
Essa realidade teria sido completamente diferente se o primeiro decreto republicano, assinado pelo Marechal Deodoro da Fonseca em 15 de novembro de 1889, determinasse que a educação fosse igual para todos, ricos e pobres, brancos e negros, moradores de cidades grandes ou pequenas. E que, para dar exemplo, determinasse que os filhos dos dirigentes republicanos, eleitos pelo povo, estudassem nas escolas dos filhos do povo.
Em vez disso, ao longo da gestão de 29 presidentes, a escola brasileira manteve-se dividida: a dos ricos e a dos pobres. E os parlamentares e governantes republicanos mantiveram seus filhos nas exclusivas escolas dos ricos, e aindarecebem dinheiro público para pagar parte da mensalidade.
É uma pena que os primeiros republicanos não tenham tomado essa decisão, mas ainda é tempo. República significa escola igual para todos. Sem desculpas para que os governantes fujam da escola do país que eles governam. Talvez, se forem obrigados a ter seus filhos na escola do povo, cuidem melhor dela.
Seria moralmente correto implantar imediatamente essa decisão republicana, mas politicamente isso é impossível, por causa do vício histórico dos privilégios. Os dirigentes certamente serão contrários a isso. Reação idêntica aconteceu cada vez que se defendeu a abolição da escravidão. A escravidão deixou o Brasil viciado, e obrigou a abolição a vir aos poucos, sempre com prazos para que seus donos se acostumassem ao que então parecia absurdo: acabar com a divisão entre escravos e livres. Da mesma forma, hoje não é possível adotar de imediato uma escola republicana: equivalente para todos, parlamentares e seus eleitores. Diante dos vícios araigados, é preciso dar um prazo de sete anos para essa decisão ser executada: no 125º aniversário da República, a partir de 2014.
Certamente, os líderes republicanos usarão todos os argumentos para não "condenar" os representantes do povo a colocar seus filhos na escola pública. Dirão que tira a liberdade do cidadão, mas ninguém é obrigado a ser candidato e a ter vida pública. Dirão que isso impede a educação religiosa, mas nada impede a educação religiosa em aulas especiais nas igrejas. Dirão que é anticonstitucional. Mas este é o melhor argumento para justificar a proposta: não é republicana a Constituição que impede que a escola do povo seja boa a ponto de receber os filhos dos eleitos pelo povo.
Além de fazerem um gesto republicano, do ponto de vista simbólico, os governantes certamente cuidarão melhor das escolas do povo, se forem obrigados à sua utilização.
Sete anos é o prazo necessário para acalmar os vícios dos nossos republicanos e evitar um desastre similar à longa esperapela abolição.

* Professor da Universidade de Brasília, senador pelo PDT / DF.

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