16 dezembro 2007

A GLOBO, AS FAVELAS E O PICAPAU - Luiz Carlos Azenha

14.12.2007A GLOBO, AS FAVELAS E O PICAPAU
Por Luiz Carlos Azenha (*)
Nelson de Sá, na Folha: "Mais Choque - Do confronto na favela diante da Globo SP, o JN não deu as cenas de crianças e mulheres. Record e Band, sim. E o JN questionou os favelados pelo trânsito e pelos barracos vazios."
A partir disso, um leitor quer saber se a política editorial da TV Globo é contra os favelados. Sei lá. Não existe um livro e, se existisse, provavelmente eu não teria tido acesso a ele. Existe um preconceito e se manifesta, consciente ou inconscientemente. O jornalismo é hoje uma atividade de classe média. Já foi reserva de mercado de pé-rapados.
A Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde me formei, hoje é formadora de mão-de-obra barata para tocar as redações. A molecada fala três idiomas mas nunca andou de trem de subúrbio, nem por curiosidade. Existem exceções, aqui e ali. Mas a falta de compromisso público é evidente.
Os meninos e meninas querem as dicas para ser correspondente. Todo mundo quer começar a carreira como correspondente internacional. Não há nada de errado nisso, mas acho que começar pela periferia de São Paulo pode ajudar mesmo quem fala alemão. Você pode optar por ajudar a criar uma realidade paralela, que é o que está acontecendo cada vez mais na TV brasileira. Como relax para quem chega em casa cansado, depois de duas horas chacoalhando em um ônibus, tem lá sua função anestésica.
A TV Globo de São Paulo fica na avenida Berrini e tem várias favelas por perto. Os favelados serão expulsos não pela TV Globo, mas pela valorização do mercado imobiliário. Aperta aqui, avança ali, parece claro que serão mandados para longe. Portanto, não acredito que a Globo seja contra os favelados, mas pode ser contra favelas por perto dela.
Há a suspeita de que o seqüestro de um repórter da TV Globo pelo PCC tenha sido organizado a partir de uma favelinha na vizinhança. É uma suspeita que se encaixa perfeitamente no preconceito, no "nós contra eles", no simplismo de favelado=bandido. Ainda que a sociedade acredite na necessidade de remover uma favela, seria essencial debater as questões importantes de São Paulo e do Brasil: os sem-teto, a favela, o uso da polícia para fazer "política social" e o MAIOR problema quando se trata especificamente de São Paulo, que é o trânsito.
Porém, no caso específico da Globo, além de não existir o espaço editorial para esse tipo de debate em uma concessão pública - ou seja, que pertence a todos os brasileiros, favelados inclusive - tratar desses temas em ano pré-eleitoral exigiria romper a aliança da emissora com o governo José Serra, os tucanos e os democratas paulistas.
Não quero dar uma resposta simplista. A TV Globo é uma gigantesca estatal, tem tantas tendências quanto o PT. O Campo Majoritário na TV Globo é tão ou mais leninista que o José Dirceu na vitória. O Ministério do Interior, também conhecido nos corredores como de Combate aos Vícios, já manifestou por escrito sua oposição à urbanização das favelas no Rio de Janeiro. É contra as cotas raciais e "abafa" esse debate internamente, já que acredita que as cotas poderão provocar uma guerra civil no Brasil. Eu mesmo, que sou contra as cotas impostas de cima para baixo, jamais poderia levantar esse debate internamente. A TV Globo é contra as cotas e acabou, mesmo que o papa for a favor. Se o papa disser que é a favor, a TV Globo não noticia. E as cotas que resultam de um consenso entre estudantes, professores e funcionários de uma universidade? Eles são contra, até porque são contra a autonomia universitária e os livros didáticos que não reproduzem o dogma ministerial.
"Remoção de favela provoca congestionamento recorde", diz a manchete do caderno Cotidiano, da Folha. É jornalismo mauricinho, em que o automóvel vale mais que gente. Fiz as contas e, na ponta-do-lápis descobri que, no meu caso, é mais barato não ter automóvel do que tê-lo em São Paulo. Vendi o meu, para espanto de amigos. Dá para andar a pé, de metrô, de táxi e de ônibus. Menos stress. Menos gasto. Mais saúde (?) Ganhei duas horas por dia para ler.
O trânsito afeta ricos, pobres, negros, brancos, favelados e dondocas. É um CAOS. Mas caos, no Brasil, é palavra reservada para problemas federais: caos aéreo, por exemplo.
Por todos os motivos que apontei acima, o espaço entre o Jornalismo da mídia corporativa e o Brasil real só faz crescer. O compromisso "deles" é de falar e escrever para "eles". E, embora a favela veja a Globo, a Globo faz de conta que não vê a favela. Nem acho que isso prejudique a audiência, uma vez que depois de duas horas chacoalhando num ônibus tem muita gente feliz de embarcar numa realidade paralela.
Seria simplista dizer que a Globo é contra as favelas. No Rio de Janeiro a política editorial da empresa é claramente favorável à estratégia de confronto militar do governador Sérgio Cabral, que tem e dá apoio ao governo Lula. O Ministério do Vício da emissora, como escrevi acima, já se manifestou por escrito contra a urbanização das favelas. Não pediu a remoção, mas se é contra a urbanização qual é a proposta? Rever a política que atrai gente para a periferia das grandes cidades? Debater as políticas regionais brasileiras? Fazer a reforma agrária? Descentralizar o poder econômico? Nada disso é debatido na TV brasileira. Os melhores debates estão, por incrível que pareça, na TV Câmara e na TV Senado, embora os atores sejam péssimos.
Minha esperança é ver alguns gatos-pingados inconformados. É um favelado que vai na lanhouse. Outro que se forma na universidade. O pobre começa a ter acesso a outras fontes de informação. O cara que compra a Veja também compra a Carta Capital. O leitor da FolhaOnline descobre o Fazendo Media, do Marcelo Salles. O Brasil vai mudando, ainda que devagar, sob os pés dessa gente. Eu me divirto ao ouvir, através de amigos, o terror causado pelo Picapau, o desenho animado campeão de audiência. Fica todo mundo sem entender direito o fenômeno. Já perguntaram a quem assiste o Picapau? Perguntar? Eles não perguntam nada. As respostas já estão todas prontas.
A fórmula deles é simples: eles falam e a gente escuta. Eles decidem e a gente obedece.
(*) Luiz Carlos Azenha é jornalista, foi repórter da TV Globo e hoje edita o sítio Vi o Mundo (
www.viomundo.com.br).

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