30 setembro 2008

Crônica
Lixo
Fernanda Torres
Passei as festas de fim de ano em Fernando de Noronha, minhaadorada ilha. Lá, por acaso, comemorei o Natal com uma família vindade São Paulo, hospedada na mesma pousada que eu. O pai tinha um fortesotaque do interior do Paraná e nos disse, com um sorriso maroto, queera lixeiro.
Ficamos curiosos e ele acabou contando sua saga. Nascidona roça paranaense, foi tentar a sorte em São Paulo há mais de trintaanos, com uma mão na frente e outra atrás. Depois de muitos bicos esem nenhum futuro no horizonte, percebeu no ramo da carne umapossibilidade de sustento.
Começou a vender jornal velho a preço debanana aos açougues da região. Na época, olha como isso é antigo,ainda se embrulhava carne com jornal e reciclar era um verbo queninguém conjugava. O paranaense era um homem de visão. Depois dabem-sucedida experiência com o jornal velho, e acometido por uma fortecompulsão, passou a olhar o lixo com olhos de cobiça.

Cresceu e hoje domina o mercado de reciclagem de latas de alumínio em São Paulo.
Mandei importar três máquinas.
Dá vontade de chorar – disse ele.
– Você vê entrar o lixo de um lado e sair ouro do outro, ouro!

Apesar de o Brasil ser um dos maiores produtores mundiais dealumínio, o país exporta tudo o que extrai do solo, nada fica aqui.Praticamente todo o alumínio consumido no país vem das ruas, da forçageológica de formiguinhas humanas que sustentam empresas de pequeno,médio e grande porte. Atualmente, a família que passava férias emNoronha é abastecida por dezenas de cooperativas de coleta, homens emulheres sem grandes perspectivas que encontram nas latinhas ummercado informal de sustento, exatamente como o herói desta crônica,há quarenta anos.Todos eles trabalham no ramo, sorrindo de orelha a orelha,querendo seguir o faro do pai. A filha revende o papel usado doescritório nos bairros menos favorecidos da capital paulista.

Os olhos do pai brilham quando fala da fortuna que é possível fazer com pneu,pilha, garrafas pet, restos de computador... Este é um novo negócioque o paranaense morre de pena de não ter mais idade para explorar: osincontáveis materiais preciosos contidos no lixo tecnológico doscelulares, bips e videogames. Ele falava em tecido de garrafa, deouro, platina e cobre vindos de pilhas usadas, de asfalto de altíssimonível retirado de pneus velhos. Ele me esclareceu a respeito do quepode render um aterro de lixo bem estruturado. Fiquei fascinada comaquele homem, um jeca-tatu visionário made in Brazil.
O lixo é o grande desafio do futuro.

Esqueça a arte, a ciência...

Se o homem não aprender a dar conta de seus dejetos, afundará nessemar de lama. O antropólogo Jared Diamond, em seu livro Colapso,escreve sobre um amigo da República Dominicana que profetiza, diantede uma praia coberta de sujeira, que a humanidade vai ser soterradapelo próprio lixo. Dizem que existem verdadeiros vórtices de imundicelevados pelas correntes no meio dos oceanos, lixões à deriva.

Saí de Noronha convencida de que deveria montar uma firma dereaproveitamento de lixo, querendo juntar pneu, explorar os metais daspilhas velhas. Desisti assim que botei o pé em casa e voltei para oque sei fazer. Mesmo assim, voltei diferente. Passei a separar o lixo com mais seriedade e a recusar os zilhões de sacolas de plástico queme oferecem cada vez que compro uma aspirina. Uso minha shopping bagcom mais freqüência e me revolto com o tamanho das embalagens dosbrinquedos dos meus filhos. São cinqüenta camadas de plástico duro,inviolável, que, conforme abrimos, se multiplicam em mil. No fimrestam um brinquedinho e uma montanha de lixo ao lado.Lembro do tempo em que eu admirava o excesso de invólucros dossupermercados americanos, a quantidade de isopor para embalar umafruta, as cinqüenta sacolas para presentear um anel, uma prosperidadeque hoje mais me parece ignorância.

Já o paranaense, por mim, levava oPrêmio Nobel da Paz na Consciência. Ele merece.

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