05 outubro 2006

Legacy x 737 800

Bem acima da Amazônia, uma batida e um céu vazio

Joe Sharkey, repórter do jornal The New York times estava a bordo do avião Legacy da Embraer, que colidiu com o Boeing 737-800 da Gol.

Era um vôo confortável, rotineiro.

Com o quebra-sol da janela fechado, eu estava descansando em meu assento de couro a bordo de um jato executivo de US$ 25 milhões, voando a mais de 11 mil metros acima da vasta floresta tropical Amazônica. Cada um dos sete a bordo do jato para 13 passageiros estava na sua.

Sem aviso, eu senti um solavanco e ouvi uma forte batida, seguida por um silêncio assustador, exceto pelo zunido dos motores.

E então vieram as palavras que nunca esquecerei. "Fomos atingidos", disse Henry Yandle, um outro passageiro que estava em pé no corredor perto da cabine do jato Legacy 600 da Embraer.

"Atingidos? Pelo quê?" me perguntei. Eu levantei o quebra-sol. O céu estava claro; o sol baixo no céu. A floresta tropical parecia não acabar mais. Mas lá, na extremidade da asa, se encontrava uma aresta dentada, talvez de 30 centímetros de altura, onde uma winglet (ponta da asa) de 1,5 metro devia estar.

E assim começaram os mais angustiantes 30 minutos da minha vida. Me diriam várias vezes nos dias seguintes que ninguém jamais sobreviveu a uma colisão no ar. Eu tinha sorte de estar vivo - e apenas posteriormente é que tomaria conhecimento de que 155 pessoas, a bordo do Boeing 737 em um vôo doméstico que aparentemente se chocou conosco, não estavam.

Os investigadores ainda estão tentando descobrir o que aconteceu, e como - por algum milagre - nosso jato menor conseguiu se manter no ar enquanto o 737 que era mais longo, mais largo e três vezes mais pesado caiu do céu verticalmente.

Mas às 15h59 da tarde da última sexta-feira, tudo o que pude ver, tudo o que sabia, era que parte da asa tinha sido perdida. E estava claro que a situação piorava rapidamente. A borda da asa estava perdendo rebites e começando a se desfazer.

Surpreendentemente, ninguém entrou em pânico. Os pilotos calmamente começaram a estudar seus controles e mapas em busca de sinais de um aeroporto próximo ou, pela janela, um lugar para pousar.

Mas à medida que os minutos passavam, o avião continuava a perder velocidade. Àquela altura todos nós sabíamos que a situação era grave. Eu me perguntava quão dolorida seria uma aterissagem - um termo otimista para queda.

Eu pensei na minha família. Não havia sentido em tentar telefonar com meu celular - não havia sinal. E à medida que nossas esperanças diminuíam, alguns de nós escreveram bilhetes para esposas e entes queridos e os colocaram nas carteiras, na esperança de serem encontrados posteriormente.

Eu estava concentrado em notas diferentes quando o vôo teve início. Eu escrevo semanalmente a coluna "On the Road" para a seção de viagem de negócios do "New York Times", publicada às terças-feiras, há sete anos. Mas eu estava no Embraer 600 para um artigo freelance para a revista "Business Jet Travel".

Os demais passageiros incluíam executivos da Embraer e de uma empresa de vôos charter chamada ExcelAire, a nova dona do jato. David Rimmer, o vice-presidente sênior da ExcelAire, me convidou para pegar uma carona para casa no jato que sua empresa tinha acabado de adquirir na sede da Embraer aqui.

E a viagem até então tinha sido boa. Minutos antes da colisão, eu fui até a cabine para conversar com os pilotos, que disseram que o avião estava voando perfeitamente. Eu li o mostrador que apontava nossa altitude: 37 mil pés ( 11.277 metros).

Então o choque, que também arrancou parte da cauda de nosso avião.

Imediatamente após, não houve muita conversa.

Rimmer, um homem grande, estava debruçado no corredor à minha frente olhando pela janela para a asa danificada.

"Quão ruim ela está?" eu perguntei.

Ele se voltou para mim com olhar firme e disse: "Eu não sei".

Eu vi a linguagem corporal dos dois pilotos. Eles pareciam soldados de infantaria trabalhando em uma situação difícil, como foram treinados a fazer.

Nos 25 minutos seguintes, os pilotos, Joe Lepore e Jan Paladino, analisaram seus instrumentos à procura de um aeroporto. Nada aparecia.

Eles enviaram um pedido de socorro, que foi recebido por uma avião de carga em alguma parte da região. Não houve contato com nenhum outro avião e certamente não com um 737 no mesmo espaço aéreo.

Lepore então avistou uma pista em meio à mata escura.

"Eu consigo ver um aeroporto", ele disse.

Eles tentaram contatar a torre de controle, que era de uma base militar escondida Amazônia adentro. Ele fizeram uma curva acentuada para reduzir a pressão na asa.

Enquanto se aproximavam da pista, eles receberam o primeiro contato do controle de tráfego aéreo.

"Nós não sabíamos qual era a extensão da pista ou se tinha algo nela", disse Paladino posteriormente, naquela noite na base do Cachimbo na floresta.

A descida foi brusca e rápida. Eu assisti os pilotos lutarem com a aeronave porque muitos dos controles automáticos tinham se perdido. Eles conseguiram parar o avião restando ainda um bocado de pista. Nós cambaleamos para a saída.

"Bela pilotagem", eu disse aos pilotos ao passar por eles. Na verdade, eu inseri uma palavra impublicável entre "bela" e "pilotagem".

"Ao seu dispor", disse Paladino com um sorriso nervoso.

Posteriormente naquela noite, eles nos serviram cerveja gelada e comida na base militar. Nós especulamos interminavelmente sobre o que causou o impacto. Um balão meteorológico desgarrado? Um caça militar cujo piloto ejetou? Um avião nas proximidades que explodiu, lançado destroços contra nós?

Seja qual fosse a causa, ficou claro que estivemos envolvidos em uma colisão no ar da qual nenhum de nós devia ter sobrevivido.

Em um momento de humor negro no quartel onde dormiríamos, eu disse: "Talvez a gente esteja realmente morto e isto seja o inferno -revivendo papos furados de faculdade com uma lata de cerveja pela eternidade".

Por volta das 19h30, Dan Bachmann, um executivo da Embraer e o único entre nós que falava português, veio à mesa na sala com notícias do escritório do comandante. Um Boeing 737 com 155 pessoas a bordo tinha desaparecido no local onde fomos atingidos.

Antes daquele momento, nós todos estávamos brincando e rindo do apuro do qual escapamos. Nós éramos os 7 da Amazônia, vivendo agora um tempo precioso que não mais nos pertencia, mas que de alguma forma tínhamos adquirido. Nós nos encontraríamos anualmente para narrar que uso fizemos deste tempo.

Em vez disso, naquele momento nós baixamos nossas cabeças em um longo momento de silêncio, com o som de lágrimas abafadas.

Ambos os pilotos, com extensa experiência em jatos executivos, ficaram abalados com a situação. "Se alguém devia ter caído deveria ter sido nós", ficava repetindo Lepore, 42 anos, de Bay Shore, Nova York.

Paladino, 34 anos, de Westhampton, Nova York, mal conseguia falar. "Eu estou tentando digerir a perda de todas aquelas pessoas. Está realmente começando a doer", ele disse.

Yandle lhe disse: "Vocês são heróis. Vocês salvaram nossas vidas". Eles sorriram de forma abatida. Estava claro que o peso de tudo aquilo permaneceria com eles para sempre.

No dia seguinte, a base estava repleta de autoridades brasileiras investigando o acidente e dirigindo as operações de busca pelo 737, que um oficial me disse que se encontrava em uma área a menos de 160 quilômetros ao sul de onde estávamos, mas cujo acesso só era possível abrindo densa mata à mão.

Nós também tivemos acesso ao nosso avião, que estava sendo estudado minuciosamente pelos inspetores. Ralph Michielli, vice-presidente de manutenção da ExcelAire e um passageiro do vôo, me levou em um elevador para ver o dano na asa perto da winglet partida.

Um painel perto da borda da asa estava separado em mais de 30 centímetros. Manchas escuras perto da fuselagem mostravam que combustível tinha vazado. Partes do estabilizador horizontal na cauda foram esmagadas, um pedaço pequeno estava faltando no elevador esquerdo.

Um inspetor militar brasileiro ao lado me surpreendeu com sua disposição de conversar, apesar das limitações da conversa devido ao seu fraco inglês e meu português inexistente.

Ele especulava sobre o que tinha acontecido, mas foi isto o que ele disse: ambos os aviões estavam, inexplicavelmente, na mesma altitude e no mesmo espaço no céu. Os pilotos do 737 a caminho do sudeste avistaram nosso Legacy 600, que estava voando para noroeste rumo a Manaus, e fizeram uma manobra evasiva frenética. A asa do 737 -se precipitando no espaço entre nossa asa e a cauda alta, nos atingiu duas vezes, e o avião maior mergulhou em sua espiral fatal.

Soava como uma situação impossível, reconheceu o inspetor. "Mas eu acho que foi isto o que aconteceu", ele disse. Apesar de ninguém ainda ter dito ao certo como o acidente ocorreu, três outros oficiais brasileiros me disseram que foram informados que ambos os aviões estavam na mesma altitude.

Por que eu - o passageiro mais próximo do impacto - não ouvi nenhum som, nenhum barulho de um grande 737?

Eu perguntei a Jeirgen Prust, o piloto de teste da Embraer. Isto ocorreu no dia seguinte, quando fomos transferidos da base em uma aeronave militar para a sede da polícia em Cuiabá. Foi lá que as autoridades estabeleceram a jurisdição e onde pilotos e passageiros do Legacy 600, incluindo eu, seríamos interrogados até o amanhecer por um intenso comandante da polícia e seus tradutores.

Prust pegou uma calculadora e digitou, imaginando o tempo disponível para ouvir o barulho de um jato vindo na direção de outro jato, cada um voando a mais de 800 km/h em direções opostas. Ele me mostrou os números. "É bem menos do que uma fração de segundo", ele disse. Ambos olhamos para os pilotos desabados nos sofás do outro lado da sala.

"Eles e aquele avião salvaram nossas vidas", eu disse.

"Segundo meus cálculos", ele concordou.

Eu posteriormente pensei que talvez o piloto do avião comercial brasileiro tenha salvo nossas vidas, devido ao seu reflexo rápido. Pena que seus próprios passageiros não poderiam dizer o mesmo.

Na sede da polícia, nós fomos obrigados a escrever em uma folha de papel nossos nomes, endereços, datas de nascimento, ocupações e escolaridade, além do nome de nossos pais. Também fomos obrigados a passar por um exame com um médico de cabelo comprido, que vestia uma avental que chegava quase à sua canela. Nós fomos obrigados a nos despir até a cintura para fotografias de frente e costas.

Isto, explicou o médico, cujo nome eu não entendi mas que se descreveu como um "médico perito", era para provar que não tínhamos sido torturados.

O humor negro voltou apesar de nossas tentativas de contê-lo.

"Este sujeito é um legista", me explicou Yandle posteriormente, "eu acho que isto significa que nós estamos realmente mortos".

Mas os risos agora desapareceram, ao nos lembrarmos constantemente dos corpos ainda não recuperados na selva, e como suas vidas e as nossas se cruzaram, literal e metaforicamente, por uma terrível fração de segundo.
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Legacy ficou fora do radar por 15 minutos e recebeu 5 alertas
05/10/2006 - 07h01m - Atualizado em 05/10/2006 - 07h55m Agencia Estado

Os controladores de vôo do Cindacta-1, em Brasília, tentaram cinco vezes entrar em contato por rádio com o jato Legacy antes da colisão, na sexta-feira, com o Boeing 737-800 da Gol, que causou 155 mortes. O jato ficou com o transponder (que identifica o avião no radar) desligado 15 minutos antes do acidente. O Legacy só voltou a ser identificado na tela já sobreposto ao Gol, com um alerta de emergência. As gravações da caixa-preta do Legacy confirmam os relatos dos operadores e os registros do Cindacta-1.

O último alerta de rádio gravado na caixa-preta foi dado porque o jato estava no limite da cobertura do Cindacta-1 e devia passar a se comunicar com o Cindacta-4, de Manaus. O Legacy havia decolado de São José dos Campos e, depois de voar no eixo São Paulo-Brasília, seguia para Manaus. A caixa-preta registra que não houve resposta dos pilotos americanos. "Nela há o chamado feito pelo controle de Brasília quando o jato ia passar para Manaus", disse um oficial da Aeronáutica.

Mesmo sem resposta, o Cindacta-1 continuou a transmitir para o Legacy às cegas ("blind", no jargão do setor). Essa nova informação reforça a hipótese de falha humana da tripulação do Legacy, já que poucos minutos após o impacto com o Boeing o jato voltou a se comunicar por rádio com Brasília. (Leia aqui matéria do G1 mostrando que o Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta) tentou por várias vezes entrar em contato com o Legacy).

"Esse é um procedimento padrão. Como o controle do tráfego aéreo é fundamentalmente feito por rádio, a primeira medida foi tentar estabelecer contato com o piloto do Legacy", explicou um oficial da Aeronáutica. "Enquanto isso era feito, houve a colisão." A suspeita dos peritos é de que o comandante do Legacy, Joseph Lepore, diminuiu o volume do rádio. Ou que não estava na cabine na hora da colisão - algo que teria admitido em depoimento à polícia.

No passo-a-passo reconstituído pela Agência Estado, o Legacy ignorou seu plano de vôo. Deveria ter descido de 37 mil para 36 mil pés quando passou por Brasília e mudou o rumo para Manaus, o que não ocorreu. O sargento controlador do vôo, que se ocupava de muitos outros aviões na mesma hora, chamou o Legacy pelo rádio pela primeira vez, questionando se o avião tinha mudado a rota. Ficou sem resposta. Chamou mais quatro vezes. Àquela altura, o Legacy já estava com o transponder desligado.

A falta do sistema não faz o avião desaparecer da tela do radar. Ele só deixa de ser identificado pelo radar, que perde a exatidão da altimetria do jato. O Cindacta-1 continuava a ver o Legacy por meio do radar primário. Por ele, o controlador via a altitude aproximada do jato - quanto mais longe do radar maior a distorção na tela. O jato aparecia na tela voando numa altitude que variava de 35.800 pés a 36.500 pés. Não estava, portanto, em rota de colisão.

Como os controladores são substituídos a cada 1 hora e 59 minutos, o militar que monitorava o Legacy passou a missão para o seu substituto e avisou que ele deveria chamar o piloto americano. Foi o que o novo controlador fez, conforme registros do Cindacta-1, até que o controle repassou a supervisão do vôo para Manaus, porque o sinal estava ficando muito fraco.

Chamando o Cindacta-4 pelo rádio, o operador de Brasília alertou que o piloto não estava respondendo, mas o Legacy voava no nível 360 (36 mil pés), conforme determinado no plano de vôo. Além dos contatos por rádio, a alternativa dos controladores seria acionar outras aeronaves próximas para que elas fizessem uma ponte de comunicação com o jato. "Não houve tempo. No momento em que Brasília pediu para passar para a freqüência de Manaus é que aconteceu (o impacto)", disse um perito da Aeronáutica.

Então, o operador na torre de controle em Manaus teve a primeira indicação da tragédia: a imagem do Boeing na tela do radar ficou congelada, com a do Legacy sobreposta. Em seguida, o identificador do vôo da Gol sumiu e apareceu o do Legacy, o que significa que o transponder foi religado. Imediatamente, surgiu o registro de emergência, com os números 770. O Boeing, depois de sumir, ressurgiu perdendo altitude, antes de desaparecer definitivamente.

Quando o transponder do Legacy foi desligado, ele estava a cerca de 300 quilômetros do Gol. O Legacy voava a 820 quilômetros por hora, enquanto o Boeing vinha a 890 km/h. A velocidade de aproximação deles era de 1.600 km/h ou cerca de 26 quilômetros por minuto.

Técnicos da Aeronáutica insistem em dizer que não houve erro no controle do operador de vôo, assim como estão convencidos de que o transponder do Legacy foi desligado, embora não consigam entender por quê. Como era o primeiro vôo do jato, especialistas acreditam que o piloto poderia estar fazendo testes de navegabilidade e queria fugir à supervisão das torres.

A hipótese de falha humana ganha força porque no dia seguinte ao acidente foi feita uma reconstituição dos dois vôos. O teste com dois aviões Hawker HS 800 de alta performance não constatou nenhum problema nos radares ou na comunicação via rádio no trajeto.

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Se vc tem estômago e quer ver algumas fotos do local do acidente, só pra ter ideia de como ficam os corpos, pode pedir que eu mando outro email. Essas coisas a gente pergunta antes.

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