19 outubro 2006

Texto publicado na revista PIAUÍ

Um horror, grande e mudo, um silêncio profundo


Poucos falam como Roberto Jefferson, 53 anos. “Construí minha vida com fidúcia”, proclama, luxuosamente, no carro que o leva para Petrópolis no dia das eleições. Havia passado a manhã acompanhando a filha, Cristiane Brasil, candidata a deputada federal pelo PTB, que não se elegeu. Para os jornalistas que o seguiram na caminhada pelo Flamengo, serviu-se de sentenças e expressões ornamentais: “política farisaica do PT”, “manifestações populares eloqüentes que me aquecem o coração”, “o poder hoje já não emana do povo, mas dos concursos públicos que escolhem procuradores e policiais federais”. Roberto Jefferson não fala — perora. Sobre a maneira como o então deputado federal Geraldo Alckmin se desincumbiu de uma missão que ele lhe confiara, afirma: “Ele se houve maravilhosamente bem”. Jefferson não diz ondas, prefere vagas; ao invés de acho, é creio.

No Santana 2002, guiado por Eduardo Nunes Serdoura, seu motorista há 25 anos, ensina seus truques de sobrevivência no mundo da política. “Nunca se deve fazer campanha em bar. É lugar de homens exaltados; eles bebem e perdem a compostura.” Dos políticos que admira, põe no topo Fernando Henrique Cardoso. “FHC te faz importante, te chama, te seduz, busca tua opinião. Ele, o presidente da República; você, apenas líder de partido. É a relação do romance, em oposição à relação do PT, que é a da prostituta.” Explica: “FHC voltara de Washington, onde havia sido homenageado por Clinton. Na mesma tarde liguei para ele a respeito de uma questiúncula do Congresso. Ele disse: ‘Roberto, venha cá’. E eu fui, e ele me falou do presidente americano, fez confidências. Saí de lá maior do que eu mesmo. Já Lula só me recebeu em 2005. E Dirceu só me chamava para o toma-lá-dá-cá”.

Na política, cada gesto deve ser medido. Certa vez, Jefferson foi convidado para ir à casa do então deputado José Roberto Arruda, o mesmo que acaba de se eleger governador do Distrito Federal. Arruda queria se transferir para o PTB. “Ele recebeu a mim e a dois companheiros. Serviu-nos um vinho arrolhado — trouxe a garrafa já aberta, com a rolha parcialmente para fora. Demonstrou desapreço.” Foi o primeiro sinal. A conversa desandou. Arruda não foi aceito no PTB. Com Cesar Maia, foi igual: ele havia sido eleito prefeito do Rio pelo PTB. Jefferson e dois companheiros foram à casa dele. “Ele nos recebeu de chinelo. Eu e meus companheiros levamos nossas esposas. Maia conversou conosco por uma hora e não teve a elegância de chamar sua mulher. Sequer nos ofereceu uma água. Fiquei quieto, mas julguei. Maia nos perguntou: ‘O que vocês querem?’. Um companheiro pediu a direção da Comlurb, outro reivindicou não sei mais que cargo. Maia concordou. Então perguntou-me: ‘E você?’. Testei-o: ‘Nada, eu já tenho o prefeito’. Ele gostou tanto da resposta que, no dia seguinte, espalhou-a aos quatro ventos. Se sou eu, não ouço isso em silêncio. Nesse dia, rompi com ele em meu coração.” Cesar Maia diz que a história é “verdadeiríssima”.

Segundo Jefferson, para sobreviver em Brasília é necessário ter relações, palavra empenhada e não ser pequeno. O que significa “não ser pequeno”? “Significa não sucumbir à pequena negociata, ao dinheiro miúdo para aprovar essa ou aquela emenda. É o caminho sem volta rumo ao baixo clero.” Mas a lealdade não deve ser condição necessária, visto que inúmeros homens sobreviveram a traições políticas. É o caso de Renan Calheiros, que traiu Collor, traiu Fernando Henrique. “A lealdade pode sofrer oscilações, não é esse o problema. Não busque em Renan solidariedade; busque negócios: tratou, ele cumpre.” Cumpre sem voltar para trás, em silêncio. “É a omertà.”

A conversa desperta angústia do motorista Eduardo Serdoura. Escudeiro fidelíssimo de Jefferson, Edu era vendedor de jornal em sinal de trânsito quando o conheceu. É tratado pelo patrão como um igual, senta-se à mesma mesa, recebe beijos da família. Em Petrópolis, pergunta a uma das dezenas de pessoas que comem feijoada na casa do ex-deputado: “Você não acha que esses escândalos desmoralizaram a nossa classe?”. O interlocutor pergunta se ele se refere à classe dos políticos. “Não, à minha classe, a dos homens pequenos. Todos esses casos começaram com um motorista, uma secretária, um caseiro. Estamos nos saindo muito mal. Parece que somos todos traidores.” Alguém o abraça, aquieta-o.

Já são quase 16 horas. Jefferson entra no carro e vai visitar o pai. Roberto Francisco é um homem de 72 anos, professor aposentado de matemática. Tem um rosto redondo, um bigode à antiga e cabelos imaculadamente penteados para trás. A barriga é pronunciada, a voz é tonitruante como a de um barítono. Roberto Francisco a emprega para declamar poesias. Há 30 anos preside a União Brasileira de Trovadores.

O estilo Roberto Jefferson não existiria sem o professor Roberto Francisco. “Meu pai, Ibrahim, me obrigava a aprender um novo vocábulo por dia, com pelo menos cinco sinônimos. Nos dias de aniversário, tínhamos de escrever sonetos para o aniversariante. E éramos forçados a discursar por cinco minutos sobre temas irrelevantes: um copo, um grão de feijão. Aprendíamos a manter o interesse do ouvinte, a erguer a voz na hora certa, a pontuar a fala com pausas dramáticas. Tomei gosto pela língua. Era o melhor dos alunos. Só uma vez falhei. O professor pediu que eu lhe desse o imperativo positivo de resfolegar. Respondi: “Resfólega tu, resfolegai vós”. Errei. Na época, o verbo era irregular. O correto era resfolga tu.” Desde cedo, Jefferson aprendeu a salpicar drama nas suas falas. Nas CPIs, não improvisava. “Na véspera, à noite, eu fazia prelibações…” Sopesava imagens, sentia o gosto das metáforas. Recordava os parnasianos.

Roberto Jefferson cresceu entre as trovas do pai e as lições do avô Ibrahim. Num dia que chuviscava, avô e neto caminhavam. Viram um homem que regava uma planta. O avô perguntou: “O que você vê, meu filho?”. “Um homem regando plantas, vovô”. “E o que cai do céu?” “Chuva”. “Então dirija seus olhos para a catedral de Petrópolis e dê graças a Deus. A vida é uma competição, e um homem que rega plantas em dia de chuva jamais será seu adversário. Um a menos.”

O professor Francisco não hesita ao responder quem é o seu poeta do coração: “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac — um alexandrino perfeito até no nome”. É também o poeta predileto de Roberto Jefferson. O pai pergunta ao visitante se ele conhece A alvorada do amor. Não. O professor suspira, toma fôlego, apura a voz, ergue a mão e começa: “Um horror, grande e mudo, um silêncio profundo…”. Roberto Jefferson sobrepõe sua voz: “…no dia do Pecado amortalhava o mundo”. Pai e filho vão até o fim dos 43 versos. O pai tem os olhos marejados. O filho olha admirado para o pai. Seu mestre.


Este texto está no primeiro número da revista "piauí".

Nenhum comentário: