31 janeiro 2007

EU ESFAQUEEI O DEPUTADO

EU ESFAQUEEI O DEPUTADO


Ricardo Kelmer

Eu assumo: fui eu quem esfaqueou aquele deputado lá em Salvador.
Isso mesmo, fui eu. E aviso: tô muito put@ e posso esfaquear outros. E tem mais: duvido que me prendam.
Sabe por quê? Porque não tenho pulsos para me algemarem.
Nem rosto para ser fichado.
Não podem me pegar porque não estou em nenhum lugar e estou em todos os lugares ao mesmo tempo.
Eu sou a consciência indignada do cidadão brasileiro. Que não agüenta mais o que a classe política está fazendo com o povo desse país.
Fui eu quem esfaqueou aquele deputado. Mas não se preocupe com ele, o homem tem as costas largas.

Preocupe-se com a senhora que o golpeou: ela vai apodrecer na cadeia sem ter culpa. Sim, pois ela foi apenas um instrumento da minha ira sagrada, acumulada durante séculos.
Aquela mão, empunhando a peixeira, você não percebeu?
Era a mão do povo brasileiro.
Era a mesma mão persistente que todos os dias faz sinal pro ônibus lotado pra ir ao trabalho, a mesma mão cansada que rastreia os classificados atrás de emprego.
Era a mesma mão impotente que acaricia o filho faminto, a mesma mão sem futuro que pede uma ajudinha no sinal.
E é a mesma mão que votou nos políticos que aí estão.
Votou neles para que a representassem com decência. E olha o que fazem... É muita cara de pau!

Num momento delicado desse, em que toda a sociedade se concentra na tarefa de fazer o país crescer um pouco mais, os deputados federais se concedem um aumento de 91% de salário, como se já não ganhassem muito.
E como o salário dos deputados estaduais e dos vereadores é proporcional ao dos federais, todos vão ganhar aumento.
No final, essa brincadeirinha de bandidos de paletó vai custar à sociedade um custo extra anual de mais de um bilhão e meio de reais.
Isso sim é uma facada de respeito! Agora o bando dos federais vai ganhar vinte e quatro mil e quinhentos reais. Mais ajuda de custo para morar, comer, viajar e ir à esquina. Mais verba de gabinete e convocação extraordinária. Mais décimo - terceiro décimo - quarto e décimo - quinto salário.
São cem mil reais por mês para cada um.
É uma senhora fatia da pilhagem geral do país. Sem falar que, na prática, essas vidas-boas só trabalham três dias por semana.
E têm impunidade parlamentar. E ainda acham pouco. E não vamos nem falar no mensalão e em tudo que rola nas malas e nas cuecas. São uns cínicos. Fazem pose e falam bonito, mas o que querem mesmo é ficar milionários em dois mandatos e garantir uma aposentadoria rechonchuda.
Em cima dos trouxas de seus eleitores.Eu tô muito, muito put@. Como podem gozar assim da cara do povo?
Não temem que as pessoas se revoltem e invadam seus lindos gabinetes, que os seqüestrem, que joguem uma bomba no congresso para acabar com tudo?
Não, eles não temem. Porque estão tranqüilos em sua certeza de que o povo brasileiro é burro, medroso e acomodado.
É por causa dessa certeza que num minutinho o bando vota em si mesmo um aumento de doze mil reais e depois fica semanas e semanas discutindo se dá ou não dá oito reais, oito reais, de aumento no salário mínimo.

É desrespeito demais. Sabe o que os nobres parlamentares deviam fazer com esses oito reais? Eu digo. Enrolem as notas bem enroladinhas, formem um canudo e enfiem de volta lá, lá no lugar de onde vem o cheiro que infesta o Congresso Nacional, a casa que deveria ser dos representantes do povo e que está ocupada por vossas excrescências.

E você, caro cidadão eleitor?
Onde está seu nobre deputado numa hora dessa?
Ligue para ele, para ela, escreva, exija providências.
Ou será que sua Indecência votou a favor do aumento?
Se votou, então é mais um dos que agora estão rindo da sua cara de otário.
Sim, você é um grande otário.
Uma tremenda otária.
Porque é você quem vai pagar a conta desse roubo.

Fui eu quem esfaqueou o nobre deputado. Mas o golpe não foi dirigido a ele, não especificamente. O golpe foi contra toda a classe política. Certamente há um ou outro que não tem o costume de tripudiar em cima de quem o elegeu, mas como todos fazem parte da classe, é sobre todos eles que avança a minha mão firme e indignada, empunhando a lâmina afiada da revolta.

Os políticos foram eleitos para representar e defender o povo, mas o esfaqueiam todos os dias quando legislam apenas em interesse próprio.
Assim sendo, aquela senhora nada mais fez que praticar um ato de legítima defesa.
O aumento ainda não foi pago, mas o primeiro deputado já recebeu o troco.
Nas costas. Quem será o próximo?

RICARDO KELMER é escritor, letrista e roteirista, mora em São Paulo, Terra, 3a. pedra do Sol.

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