03 fevereiro 2008

SEGUNDO DIA DE CARNAVAL

Estamos no segundo dia de carnaval, vamos aproveitar para refletir sobre esse tempo de festa. Qual o sentido da Festa, qual o verdadeiro sentido do carnaval?
Bakhtin, um pós-formalista russo, numa obra datada de 1928, acentua que " a vida carnavalesca é uma vida desviada de sua ordem habitual, em certo sentido uma vida às avessas, um mundo invertido" e ainda observa "as leis, proibições e restrições, que determinavam o sistema e a ordem da vida comum, isto é, extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se, antes de tudo, o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc. , ou seja, tudo que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade (inclusive a etária) entre os homens." Portanto, dentro deste universo carnavalesco, o homem consegue superar os limites sócio-político-econômicos do dia-a-dia em sociedade para viver e celebrar a liberdade familiar entre os homens. Sem as correntes hierárquicas opressoras, na livre evolução do carnaval, o homem se organiza em massa e subverte a ordem tirânica instituída. Logo, o carnaval funciona como passarela da utopia, refúgio da fantasia, apoteose da liberdade e da igualdade. O carnaval é catarse coletiva, é purgação das tensões do dia-a-dia, é possibilidade de evasão, é expressão de protesto social para os oprimidos, é controle social para os opressores, é transgressão comercializada que serve aos donos do poder. O carnaval é ambíguo, é plural, é antropofágico, tem sentidos diferentes para diferentes pessoas, tem diferentes sentidos para a mesma pessoa. É, por isso, que todos aguardam e se guardam "pra quando o carnaval chegar", como afirmam os versos da canção-protesto de Chico Buarque, na década de 70, numa abordagem reflexiva sobre a importante função do Carnaval na vida do Homem: " Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando ? e não posso falar / tô me guardando pra quando o carnaval chegar... (...) Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada quem dera gritar / Tô me guardando pra quando o carnaval chegar." É dentro desta permissividade da abertura do carnaval que se dá o processo de mudança e renovação. As ruas e avenidas da cidade se transformam em palco onde o povo, impunemente, solta a voz reprimida, adiada e vive os mais variados papéis na prática do alívio das tensões. Do ponto de vista do poder, o carnaval institucionalizado funciona como forma de controlar os desajustes provocados pela repressão habitual. A livre fala do carnaval favorece a neutralização dos conflitos acumulados. E, assim, o Carnaval por ser polissêmico serve ao Povo e serve ao Poder.
Vamos ouvir a voz poética de Drummond iluminando uma instigante leitura sobre o carnaval.

VER E OUVIR, SEM BRINCAR

Ninguém pergunta mais:
_ Você vai brincar no carnaval?
Brincar, irmão, quem pode brincar
se perdida foi a idéia de brinquedo?
Alguns ainda perguntam:
_ Como é? Vai pular no carnaval?

Então é isso a festa: um pulo
e outro pulo e mais outro? Neste caso,
campeoníssimo seria João do Pulo.
O que ouço dizer é simplesmente:
_ Vai ver o carnaval?
Conclusão, ano 80:
Carnaval
é o visual.

Você não brinca mais,
nem mesmo pula mais
na rua hoje deserta, no salão
onde um suor se liga a outro suor
e ar condicionado é falta de ar.
Que pode o folião? Acaso existe ainda,
e funciona, essa palavra folião?
Folia, antiga dança rápida
que o adufe acompanha, no dizer
de sábio, antigo, dicionário.
Quem me dança a folia, quem folia,
quem fol ou fou, folâtre, folichon, folle,
fool, pratica o foliar?

Ah, sim, o sambista e sua escola
foliando para turistas e a distinta
Comissão Julgadora. Pontos! Pontos!
Quesitos mais quesitos! Briga feia
nessa programação oficial
que garimpa e governa o carnaval.
Foliam para os outros. Não foliam
pelo gosto,
pela graça,
pelo desejo de foliar, loucura santa,
desabrochar do corpo em rosa súbita,
em penacho, batuque, diabo, mico,
chama, cometa, esguicho, gargalhada,
a cambalhota em si, o riso puro,
o puro libertar-se da prisão
que cada um carrega um sua liberdade
vigiada, medida, escriturada.

Então pego uma sobra, vou olhar,
ouvir
a cor, o som, o balancê padronizado
que rioturisticamente se oferece
ao mercado da vista e dos ouvidos.
Eu vejo, não me integro,
não participo, não sou o grande todo,
nem o grande todo é mesmo todo e tudo.
Entre o olho e o desfile,
a arquibancada corta o meu impulso
de ser um com eles, ir com eles
pela rua afora,
pelo sonho afora.

A rua, onde ficou
a velha rua, seu espaço de brincar,
seu aberto salão a céu aberto,
sem entrada paga, sem cambistas,
e fiscais?
O carnaval é rua, não teatro,
não show, produto industrial
monumental
a ser consumido numa noite
de lenta evolução
e classes divididas
pelo respeitável público pagante.
Como comprar, como pagar
o que não tem preço e chama-se
alegria?

Boa reflexão para este domingo chuvoso de carnaval. O infantasiado coração do povo brasileiro veste a ilusão do carnaval e deixa na avenida a dor, a insatisfação das desigualdades sociais e renova-se para começar tudo de novo na quarta-feira de cinzas...

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