04 abril 2011

A Arte de Ser Feliz


Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam as flores? quem as comprava? em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.

Houve um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.

Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um jardim quase seco.

Era numa época de estiagem, da terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde,e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam o muro. Gatos que abrem e fechamos olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho no ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. Eu me sinto completamente feliz.

Mas quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecilia Meireles

14 comentários:

Luísa Q disse...

Olá Heli,
Obrigada pelo belo texto.
É uma linda mensagem.
Abraços.

ney disse...

Belo texto, como todos da Cecília Meireles, cheio de vida, simplicidade, amor, um olhar sobre tudo a nossa volta, sentir, refletir, vivenciar. DEMAIS! ney/

heli disse...

Luísa.
Obrigada pela visita.
Desejo a você um dia com muita paz.
beijos

heli disse...

Ney.

Concordo contigo.Cecília sempre nos faz refletir sobre a vida, com suas palavras simples e repletas de amor.
Tenha um dia abençoado,
beijos

Larissa Boaventura disse...

Cecilia é uma inspiração na vida de qualquer um, quando estiver para baixo, ler um texto dela é o melhor. Beijosss

Anônimo disse...

Adorei Heli, amiga!

Não conhecia o texto, mas temos todos, seguramente, muito ou tudo a ver com estas miragens de janela aberta, de coração que sonha e de olhos que enchergam.
Que bom vir-te ler.

Beijo enorme

Arione Torres disse...

Oi amiga, que linda postagem, eu tmb adoro Cecília Meireles. tenha uma linda semana, bjus, fica com Deus.

heli disse...

É verdade Larissa, ler os textos de Cecília fazem um bem enorme.
Beijosss

heli disse...

Ná.
Essa janela aberta tem tudo a ver conosco.
Tê-la por aqui é sempre um prazer.
Beijo enorme para vc também.

heli disse...

Arione.
O bom é poder contar com a sua presença carinhosa por aqui.
Linda semana para vc também.
beijos

♥Luciana de Mira♥ disse...

Olá. Gostei muito de passear por aqui e estou seguindo. Te convido a conhecer meu cantihnho.

Beijos!

heli disse...

Luciana.
Já visitei seu cantinho.Adorei saber que és uma pessoa temente a Deus.
Volte mais vezes por aqui, sua presença será sempre bem vinda.
beijos
heli

Vera Lúcia disse...

Este poema me truxe uma certa nostalgia, lembranças de um tempo que não volta mais. Mas é bom. Recordar é viver. Bjs! òtima semana!

heli disse...

Vera.
Nem sempre as nossas lembranças nos reportam para aquilo que nos torna felizes.Recordar faz parte da vida...
Beijos